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Olhares sobre Freire

Os trechos aqui colocados foram retirados do livro Paulo Freire: Uma Bibliografia, escrito por Moacir Gadotti com a colabroação de Ana Maria Araújo Freire, Ângela Antunes Ciseski, Carlos Alberto Torres, Francisco Guitiérrez, Heinz-Peter Gerhardt, José Eustáquio Romão e Paulo Roberto Padilha. 

Serão apresentados alguns depoimentos de pessoas que conviveram com Freire, e que decicidram compartilhar suas lembranças no livro, para assim ajudarem a construir a memória deste grande educador. Para ver a obra na íntegra, clique 

Momentos que não dá pra esquecer 
Amor e perda em tempos de vida -
Em dois momentos entrelaçados
Maria Stella Santos Graciani

 

Na década de 70, bem antes do retorno de Paulo Freire ao Brasil, eu já participava do Movimento pela Anistia e acalentava um sonho: de que quando Paulo Freire voltasse, visitasse a nossa casa, o Centro de Educação da PUC-SP.

E na volta dos exilados em 1979, Dom Luciano Mendes de Almeida, então bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, presenteou-me com a incumbência de ir buscar Paulo Freire na casa de seu genro e fazê-lo conhecer os trabalhos comunitários realizados no bairro de São Mateus. Ao encontrar-me, abraçou-me de maneira terna e doce, como se fôssemos velhos amigos.

A reunião com a comunidade de base foi rica e cheia de questionamentos. Paulo Freire ouvia as angústias existenciais que as pessoas iam expondo e as comentava com simplicidade comovente. “Temos que fortalecer a nossa esperança teimosa”, dizia ele.

Convidei-o para um café em minha casa. Ele aceitou. Antes que ultrapassássemos a soleira da porta, chamei minha filha Juliana para que visse. Ela olhou bem para ele e perguntou: “Ah! Este é uma estátua que anda?” Abraçando-a muito fortemente, Paulo Freire respondeu: “Quero ser sim, sempre, um patrimônio histórico de meu país que anda, observa e ri. Voltei para aprender como ele se encontra hoje, pois fiquei muitos anos fora”.

Logo a seguir, em Goiânia, na Conferência Brasileira de Educação, quando numa entrevista coletiva perguntaram-lhe o que mais o emocionou em sua volta, ele afirmou: “ Foi quando uma menina, chamada Juliana, disse-me que eu era uma estátua que anda”. Paulo Freire continuou a me surpreender. Quando ocupava o cargo de Secretário de Educação do Município de São Paulo, pediu-me que fosse a Buenos Aires representá-lo no Seminário Propostas e Alternativas Educacionais para o Terceiro Milênio. Atendi seu pedido, sentindo o enorme peso do encargo. Afinal, deparar-me-ia com um público ansiosíssimo por dialogar com um dos mais conceituados educadores do planeta. Ao expor minhas inquietações, ele me disse: “Você vai, não em meu lugar, mas no seu lugar. Pode falar sobre suas inúmeras experiências na área da educação popular. Creio que todos irão gostar muito”.

Por ocasião do aniversário dos 70 anos de Paulo Freire, o Núcleo de Trabalhos Comunitá- rios (NTC), da PUC-SP, desenvolveu uma proposta inovadora baseada na obra do educador, que foi apresentada ao público num grande evento que mobilizou mais de oitenta universitários, professores e funcionários. Na lousa da sala, símbolo da resistência puquiana, os meninos de rua – guardadores de carro – fizeram o desenho de um “Trem da História” dirigido por um maquinista barbudo (Paulo Freire) que levava em seus vagões coloridos os oprimidos de nossa sociedade.

Em 1990, relizou-se o I Congresso de Alfabetizandos da Cidade de São Paulo. Era um sonho de Paulo Freire que se tornava realidade. Em festa, ele me dizia: “Sabe, Stella, somos como educadores-profetas: olhamos para o caos e enxergamos a utopia”. “E como é ser um educador-profeta?”, perguntei-lhe então. Ele me respondeu: “É ser sujeito histórico, molhado de seu tempo”. Com um olhar terno e profundo, ele repetiu: “Nós somos educadores-profetas”.

São alguns dos momentos que não dá para esquecer.

A pesssoa Paulo Freire
Ione Cirilo

Conheci Paulo Freire há muitos anos, em Recife. Naquela época trabalhamos na pesquisa e implantação do método de alfabetização de adultos. Creio que sobre o Método Paulo Freire quase todo mundo conhece alguma coisa. Uns mais, outros menos. Mas, sobre a pessoa Paulo Freire, que eu tive o enorme prazer de conhecer, conviver, trabalhar, são poucos. Eu amo Paulo. E isto significa: respeito, admiração, reconhecimento, conhecimento. Paulo é uma pessoa tão pura e honesta que nunca permitiu ficarmos cegos diante do seu brilho, que sempre foi intenso. Por isso quem o conheceu de perto não tem dúvidas ou enganos. Pelo menos é muito difícil. Paulo sempre foi político. Ou seja: sempre esteve voltado, preocupado, integrado com o povo brasileiro. Sempre pisou sobre o real. Sempre se ocupou com o concreto. Paulo sempre foi muito amigo dos seus amigos, de quem se aproximou para conversar ou trabalhar, aprendendo junto, como ele mesmo dizia. E sempre foi extremamente carinhoso e dedicado à família, a Elza, a amante e companheira do eterno. Paulo voltou, sem nunca ter deixado o Brasil. Fui vê-lo. Ele chegou, a gente se olhou, abraçou e foi o bastante.

 

Mere Abramowicz

 

Fim de tarde cinzenta de 1986...

Penumbra da sala de jantar de uma casa da rua Valença, Sumaré. Vento frio de um inverno úmido paulistano. Estamos afundados, os três em grandes sofás. Paulo é o mais encolhido; eu e Ana, emudecidas, olhamos na quieta solidariedade de quem sente, gosta e sofre com o amigo. Há somente alguns dias Elza morreu. A companheira de 42 anos de amor, luta, presença, carinho, se foi. Após longos silêncios iniciais entrecortados por palavras murmuradas, quase imperceptíveis, Paulo fita a janela entreaberta e, através de nós, o olhar se lança em um infinito espaço...

Os quase 10 anos que me separam desse momento talvez confundam minhas memórias, mas a emoção que ainda guardo me aguça a sensibilidade. O que o mestre Paulo Freire me ensinou, naquela tarde, foi a mais bela e pura lição de como viver a perda e povoá-la de amor. Suas palavras ainda ecoam em meus ouvidos e vibram em meu coração. Elas aqui virão à tona mescladas com o que Paulo falou em 1988 por ocasião do recebimento do título de Doutor honoris causa na PUC de São Paulo. Nenhuma das citações aqui evocadas será objetiva e precisamente fiel, mas tenho certeza que haverá a fidelidade da emoção na ternura de nossa amizade.

 

1986 – “Que incrível a experiência do vazio. Sinto uma presença tão pequena do amanhã... um pedacinho só do amanhã... Como preciso e não sei amaciar a saudade.”

 

1988 – “Meus momentos foram plenamente vividos. Vivo intensamente. Não sei viver pela metade. Tanto que sinto que vou morrer intensamente, vou recusar uma morte medíocre. Não vou morrer aos poucos, nem com medo. Ao receber títulos tenho um sentimento ambíguo: gosto muito desse momento e tenho vergonha de achar que mereço. Após esse momento de ambigüidade, chego a um momento de maturidade, ao fim das cerimônias.”

 

1986 – “Meu neto me perguntou hoje: Vô existe? Ainda. Respondi. Eu não sou o futuro de meu filho; sou um pouco do passado... sou muito do presente...”

 

1988 – “Mereço porque estou vivo e se briga para estar vivendo. Fazer algo porque existo! Ponho os diplomas emoldurados no meu quarto de dormir, na minha intimidade. Não posso apagar algumas razões fundamentais porque estão me festejando hoje! Brigo desde jovem em busca de minha coerência entre o que eu digo e o que faço! Coerência de querer bem, de gostar, de amar! Não tentei nunca a absoluta coerência porque eu não saberia o que significa a incoerência. Só viver coerentemente, o tempo todo, é chato! Aqui e ali um pouco de incoerência para chamar à coerência. Há uma coragem humilde em ser coerente!”

 

1986 –“Os filhos sofrem muito mas é um sofrimento diferente. Eu não tenho que voltar, eu tenho que ir. Começo a fuga mais velho, canso rapidamente. Com a Elza eu prometia tudo: ela era minha e eu era dela.”

 

1988 – “Eu saio em busca do amor. Eu vivo amorosamente. Quem tem raiva do amor é mal amado. Bato-me pela alegria, pela festa, por uma escola de querer bem! Não aceito rigor sem alegria e sem querer bem!”

 

1986 – “É um processo lento e difícil. Eu só saio disso se eu sair. Eu não posso ‘ser saído’, puxado por alguém! Decidir que eu saio é romper. Decidir é ruptura. Ficar com o morto é a tendência. Ficar com o que está vivo, essa é a decisão! Em momentos como eu experimento agora, morre-se um pouco. Muito de mim ficou vivo. Tenho uma lealdade para com a minha sobrevivência.”

1986 – “Cada vez que recebo um título, ganho uma responsabilidade de continuar brigando pelos meus objetivos. Prometo me comportar decentemente, não me negar a viver eticamente. Brigo e amo! Por isso o título me foi dado!”

 

1988 –“Acho que não vou conseguir pegar o pedaço vivo de mim e ganhar de pedaço morto. Sei que vocês me entendem. Já pensei em parar tudo e lentamente sumir.”

E concluiu em 1988, na PUC-SP, mostrando o título: “Amei 42 anos intensamente! Elza morreu e eu não matei Elza em mim. Mas optei pela vida! É a única forma de viver e ser leal a Elza! Tive a coragem de casar, de amar outra vez! Vivi momentos de culpa! Tive culpa até de olhar uma rosa bonita! Amando essa outra mulher encontrei o mundo! Quem não é capaz de amar tem que se rever!

Dedico esse título à memória de uma e à vida da outra!”

 

 

Site criado pelos alunos do 1º semestre do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da USP: Ester Ohl Fernande, Juarez de Oliveira Cardoso, Rafael Souza e Ricardo Moriyama. Proposta feita pela professora de Didática I, Rita de Cássia Gallego e assessoria do monitor Ebenezer Takuno de Menezes.

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